Reivindicação histórica do movimento de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (LGBTI+), a produção de dados oficiais sobre essa população deu um passo inédito neste ano, com a divulgação da primeira contagem populacional de homossexuais e bissexuais na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Dia do Orgulho LGBTI+, comemorado hoje (28), ativistas e pesquisadores explicam que, apesar desse avanço, a subnotificação mostra o longo caminho de luta contra os temores e estigmas que levam essas pessoas, muitas vezes, a esconderem sua identidade.
Divulgada
em maio, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) contabilizou 2,9 milhões de
homossexuais e bissexuais no Brasil. Na própria apresentação dos dados, o IBGE
pediu cautela ao interpretar a informação. “A gente não está afirmando que
existem 2,9 milhões de homossexuais ou bissexuais no Brasil. A gente está
afirmando que 2,9 milhões de homossexuais e bissexuais se sentiram confortáveis
para se autoidentificar ao IBGE como tal”, disse a analista Nayara Gomes, em
entrevista coletiva.
O
instituto apontou principalmente o estigma e o preconceito por parte da
sociedade como fatores que podem fazer com que as pessoas não se sintam seguras
em declarar a própria orientação sexual. O IBGE também ponderou que a falta de
familiaridade da população com os termos usados na pesquisa pode ter
contribuído para a subnotificação.
Professor
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
representante do Conselho Regional de Psicologia no Conselho Estadual dos
Direitos da População LGBT, Pedro Paulo Bicalho considera que qualquer dado
produzido sobre a população LGBTI+ sempre estará sujeito à subnotificação,
enquanto o contexto social incluir violências e estigmas contra a diversidade
de identidades de gênero e de orientações sexuais.
"Para
conseguir fazer uma pesquisa em que não haja subnotificação e em que a gente
consiga entender quem são, como são e como vivem todas as pessoas LGBTI+,
teríamos que fazer isso em uma sociedade livre de LGBTIfobia, que não é a
nossa. Acredito que não será a nossa geração, em que pesem todos os esforços e
lutas sociais para que isso possa diminuir", afirma Bicalho. "O máximo que a gente
consegue é uma pesquisa sobre pessoas que se reconhecem LGBTI+".
O
pesquisador explica que esse obstáculo deve ser encarado como contexto para
interpretar os dados, e não como motivo para que não sejam coletados. "Não
quer dizer que não devemos continuar insistindo, só que precisa ser muito bem
construído".
O
psicólogo defende que um ponto importante é estabelecer relação de confiança da
pesquisa com a população LGBTI+, para que ela acredite na finalidade do estudo
e no aproveitamento dos dados para produzir uma vida melhor.
"Mesmo
entre as pessoas que se reconhecem LGBTI+, passa por uma relação de confiança
falar sobre isso, então, um tipo de pesquisa como essa precisa ser muito bem
preparada. Esse Estado que chega à casa das pessoas e pergunta quem elas são
precisa fazer isso de forma que essa pessoa confie e entenda para que está
dando a informação. Passa também, acrescenta o pesquisador, por uma relação de
confiança que não é só entre entrevistador e entrevistado, mas também em
relação ao país em que se vive. Se o LGBTI+ não consegue entender que esse país
tem vontade política de produzir políticas públicas sobre nós, será muito
complicado".
Visibilidade
A
presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Keila Simpson,
também acredita que um trabalho de treinamento das pessoas envolvidas em
pesquisas como a PNS e o Censo poderia criar um clima mais acolhedor para que
os entrevistados respondam sobre questões como a identidade de gênero e a
sexualidade.
"O
próprio IBGE pode procurar consultores e consultorias de pessoas que trabalham
com o assunto, têm essa experiência e que vão ajudar a achar o melhor caminho
para fazer essas perguntas", avalia. "Um elemento importante é fazer
formação, contratar pessoas com traquejo nesse universo e que possam tratar com
humanidade os que vão responder à pesquisa".
Apesar
dos estigmas e violências, Keila defende que há, mesmo assim, grande número de
LGBTI+ disposto a responder pesquisas de órgãos oficiais para ajudar na
produção de dados. "Quando a gente vê uma parada LGBTI+, as pessoas que
estão ali querem visibilidade. Elas não iriam se ocultar de responder a um
Censo do IBGE".
Enquanto
deu o primeiro passo para produzir dados oficiais sobre homossexuais e
bissexuais, a PNS ainda deixou de fora a população transexual, já que nenhuma
pergunta sobre identidade de gênero foi incluída no estudo. Sem dispor de
informações oficiais em temas como trabalho, saúde e segurança pública, a Antra
- Associação Nacional de Travestis e Transexuais - é uma das organizações não
governamentais que se engajou na produção dos próprios dados e divulga
anualmente o Dossiê de Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais
Brasileiras. O trabalho é parecido com o realizado pelo Grupo Gay da Bahia, que
produz relatórios anuais sobre casos de assassinatos de LGBTI+ noticiados pela
imprensa.
"O
que a Antra faz é mexer em uma temática que, se a gente não jogar luz, ela não
vai existir", afirma Keila,. Ela conta que a associação não tem recursos
para contratar pesquisadores e depende de voluntários e ativistas para que o
estudo possa ser lançado todo dia 29 de janeiro, quando é comemorado o Dia
Nacional da Visibilidade Trans.
Censo
A
falta de mais dados faz com que as demandas dessa população não sejam
contempladas como poderiam, argumenta o diretor de políticas públicas da
Aliança Nacional LGBTI+, Cláudio Nascimento, que esteve à frente do programa
estadual Rio Sem Homofobia.
"É
necessário ter política focalizada para a população LGBTI+? Sabemos que sim,
mas não temos dados para confirmar essa informação e garantir, nos próximos
anos, um conjunto de políticas públicas que possam mudar essa realidade. É
muito grave que hoje exista um apagão de dados oficiais no Brasil que interfira
de maneira estratégica na produção de políticas para a comunidade LGBTI+".
Cláudio
Nascimento considera que um passo importante nesse sentido teria sido a
inclusão de perguntas no próximo Censo que pudessem gerar mais dados, ainda que
possivelmente subnotificados.
"A
inclusão da população LGBTI+ no Censo vai além de saber quantos somos. É
preciso qualificar a análise da inclusão ou não da população LGBTI+ em diversas
políticas, como acesso à educação, saúde, nível de emprego, formação
profissional, condições de moradia", afirma. "Quando foi incluído o
quesito cor/raça, observou-se, no primeiro momento, grande subnotificação,
porque não existiam campanhas e havia pouca capacitação das equipes do IBGE.
Com o tempo, campanhas e capacitação, houve uma mudança enorme e mais de 50% se
declaram pretos e pardos hoje. A mesma coisa é com os LGBTI+. Num primeiro
momento, pode ser que ocorra subnotificação, mas é um passo importante".
Após
ação civil pública do Ministério Público Federal, a inclusão de perguntas sobre
orientação sexual e identidade de gênero no Censo chegou a ser determinada pela
Justiça Federal do Acre no início deste mês, mas o Tribunal Regional Federal da
1ª Região derrubou a liminar ao atender a um recurso da Advocacia Geral da
União (AGU). O IBGE havia argumentado que não é mais possível incluir as
questões a menos de dois meses do início das operações do Censo e que, para
cumprir a decisão, teria que adiar novamente a realização da pesquisa, que já
foi postergada em 2020 e 2021.
Apesar
de acatar o pedido, o desembargador federal José Amilcar Machado afirmou na
decisão que se baseou em aspectos gerenciais e temporais, considerando que
faltam menos de dois meses para a realização da pesquisa, e que não se
questiona a necessidade de buscar tais informações. “O cuidado e o esforço dos
governantes devem ser amplos e considerar todo cidadão, buscando o atendimento
dos seus direitos e a proteção das suas garantias, o que demanda política
pública própria devida a essa minoria, sem discriminação alguma.”
De
fora do Censo, as questões relacionadas a identidade de gênero e orientação
sexual estão previstas pelo IBGE entre os tópicos da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), no primeiro trimestre de 2023;
da Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde (PNDS), prevista para o segundo
trimestre de 2023; da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que deverá ser
realizada em 2024; e da próxima edição da Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF).
Dados
contra o preconceito
Para
o antropólogo e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Sérgio Carrara, a discussão do tema e a
produção de dados, ainda que subnotificados, são um avanço. Ele lembra que há
menos de 20 anos, institutos de pesquisas classificavam como dado inconsistente
a presença de dois adultos do mesmo sexo que declarassem cônjuges.
"O
próprio sistema descartava o dado, porque não poderia haver uma relação de tipo
conjugal entre pessoas do mesmo sexo. Então, você não só não tinha a informação
como, quando ela era fornecida, era eliminada. A gente parte desse momento em
que não se tem informação nenhuma, quando se discute a possibilidade de coleta
da informação e ela começa a ser feita".
Carrara
também considera que a subnotificação está ligada ao preconceito, mas vê a
própria realização das pesquisas como forma de combatê-lo.
"Apenas
o fato de colocar a questão já contribui para diminuir o estigma e a
discriminação. A pessoa que ouve a pergunta, independentemente da resposta, vai
perceber que aquilo pode ser perguntado. Então, o fato de a questão estar no
Censo contribui para combater o preconceito, que faz com que as respostas sejam
subnotificadas em um primeiro momento". Para ele, silenciar a questão é
colaborar com o preconceito. "Colocar a questão, mesmo sabendo que vai
haver subnotificação inicialmente, é importante para que se chegue a um ponto
em que a subnotificação não seja tão significativa".
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: Agência Brasil
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