O caso da garota de 11 anos que engravidou após ser vítima de um estupro em Santa Catarina não é exceção no Brasil. Dados preliminares do Ministério da Saúde coletados pelo g1 apontam que, no ano passado, 17.316 garotas de até 14 anos foram mães no país. O número tem diminuído nos últimos anos.
De acordo com a legislação vigente, sexo com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável. Caso a violência leve à gestação, a criança tem direito ao aborto legal. Como o número inclui garotas que engravidaram após completar 14 anos, não é possível dizer que todas são vítimas de estupro.
A
especialista em direito das crianças e adolescentes e coordenadora na Comissão
de Direitos Humanos da Câmara Legislativa da Câmara Legislativa do Distrito
Federal, Perla Ribeiro, afirma que as notificações de gravidez são a parte mais
visível do problema de estupro de vulnerável no Brasil, que ainda sofre com
subnotificação.
"A
gente tem, nos casos de violência sexual contra criança e adolescente, uma
subnotificação muito grande. Quando essa criança chega a engravidar, é quando
você confronta isso com o Estado, porque ela precisa passar pelo processo de ir
ao hospital e aí se descobre a questão do abuso e da violência sexual",
conta.
Especialista
em violência sexual e aborto previsto em lei, a psicóloga Daniela Pedroso
afirma que manutenção da gravidez em crianças vítimas de violência sexual traz
uma série de problemas psicológicos para a criança, além de malefícios físicos,
sociais e financeiros.
Ela
diz que essa situação pode ser ainda pior, caso seja negado a essa vítima o
direito de interromper a gravidez legalmente, como ocorreu com a menina de
Santa Catarina, mantida pela Justiça em um abrigo no estado para evitar que
faça um aborto autorizado.
Vítima
de estupro, a menina de SC descobriu estar com 22 semanas de gravidez ao ser
encaminhada a um hospital de Florianópolis, onde teve o procedimento para
interromper a gestação negado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer.
Depois
que o caso foi parar na Justiça, a decisão e trechos de uma audiência sobre o
caso foram revelados em uma reportagem dos sites Portal Catarinas e The
Intercept. O material foi publicado na segunda-feira (20). No vídeo, Zimmer
tenta convencer a menina a manter a gravidez e chegou a questionar a criança se
ela "suportaria ficar mais um pouquinho".
Na
manhã de terça-feira (21), a Justiça determinou que a menina voltasse a morar
com a mãe. A advogada de defesa da família não deu detalhes sobre qual será
decisão em relação ao aborto. Já a juíza do caso foi transferida para outra
comarca, após receber uma promoção. Segundo ela, o convite foi feito antes da
repercussão do caso.
Pedroso,
que atende meninas e mulheres vítimas de violência sexual há 25 anos, conta que
muitas vezes essas garotas não têm ideia do que está ocorrendo com elas ou com
os seus corpos.
“O
caso dessa menina impacta porque me faz lembrar de todas as situações parecidas
de meninas de 10, 11 anos que já atendi. Me evoca a lembrança dessas meninas
que eram crianças, que não tinham às vezes entendimento sobre o próprio corpo,
que não sabiam o que estava acontecendo”, afirma.
“Eu
lembro sempre de um caso de uma menina, de como ela descobriu. Ela tinha 10
anos, estava no banho e estava saindo leite do seio dela e ela chamou a mãe, e
ela conseguiu contar para essa mãe que estava grávida de um estupro do
padrasto. E como era o atendimento [psicológico] dela? Era sentar no chão com
ela, que era uma criança.”
Norte
e Nordeste têm mais casos proporcionalmente
A
maior parte dos casos de meninas de até 14 anos que tiveram filhos foi
registrada no Nordeste (6.855). O Norte aparece em seguida, com quase 4 mil
registros, seguido pelo Sudeste (3,8 mil), Centro-Oeste (1,4 mil) e Sul (1,3
mil).
Quando
olhamos os números totais de nascimentos nas regiões, por outro lado, o
Nordeste (833 mil) tem menos registros de nascidos vivos que o Sudeste (1,2
milhões). Já o Norte (322 mil) notificou menos nascimentos que o Sul (396 mil).
Ou
seja, proporcionalmente, Norte e Nordeste, regiões com maiores índices de
pobreza, têm mais casos de meninas grávidas que as demais regiões.
O
g1 questionou o Ministério da Saúde sobre os dados completos de 2021, mas não
recebeu a informação até a publicação deste texto.
Coordenadora
de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública Estadual do Rio de
Janeiro, Flávia Nascimento lembra que a previsão legal para a interrupção de
gravidez em meninas menores de 14 anos está na legislação brasileira desde
1940.
A
defensora acredita que a lei, por não definir um período específico em que pode
ocorrer o procedimento, permite a interrupção em qualquer momento da gravidez,
mas ressalta que este não é um consenso no mundo jurídico.
Nascimento
afirma ainda que tem notado uma maior dúvida entre médicos em relação a esse
tema, principalmente após posicionamentos recentes do Ministério da Saúde. No
começo deste mês, a pasta publicou documento em que diz que “não existe aborto
‘legal’” e defende que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam
comprovados após “investigação policial”.
“A
gente tem percebido um aumento desses casos, dessa dúvida dos profissionais de
saúde, principalmente desde que o Ministério da Saúde começou a querer impor
uma limitação a um direito que é amplo, que não é limitado. O MS, que deveria
orientar, traz uma orientação contrária a lei e acaba provocando muita dúvida
nos profissionais de saúde”, comenta.
Número
está em queda
Os
dados históricos de nascidos vivos apontam uma diminuição da gravidez na
infância no país desde 2014, quando 28.245 meninas tiveram filhos. Dois anos
depois, em 2016, foram 24.139 garotas. Em 2019, antes da pandemia, foram
registrados 19,3 mil nascimentos de mães de até 14 anos.
Apesar
da queda, as duas regiões com maiores taxas proporcionais de meninas gravidas —
Norte e Nordeste — registraram aumento nos casos em 2021, segundo os dados
preliminares do MS. O Norte passou de 3.740 em 2020 para 3.975 em 2021,
enquanto o Nordeste foi de 6.822 a 6.855.
Apesar
da redução, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) ressaltou, em artigo
publicado no fim de 2021, que a taxa de fecundidade de adolescentes brasileiras
é maior que a média global: são 53 adolescentes grávidas a cada mil, enquanto
no mundo são 41. No texto, o órgão da ONU fez um alerta para a importância da
informação e da educação integral em sexualidade como ferramentas de prevenção
à gravidez precoce, e para a necessidade de discutir as violências e abusos que
vitimizam adolescentes e meninas.
Aborto
legal
O
g1 publicou uma série de reportagens que explicam o que é o aborto legal, após
o Ministério da Saúde publicar uma cartilha na qual afirmava que "não
existe aborto legal" e defender que os casos permitidos no Brasil sejam
submetidos a "investigação policial".
Nas
matérias, há detalhes sobre o procedimento de interrupção de gestação
autorizado pela legislação brasileira. Ele deve ser oferecido gratuitamente
pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e é permitido nos casos em que a gravidez é
decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um
diagnóstico de anencefalia do feto.
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: g1
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