Por trás dos portões que receberam cerca de 80 milhões de toneladas de lixo ao longo de 34 anos, hoje existe uma área reflorestada no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
As
montanhas de lixo — onde mais de 1.700 homens e mulheres disputavam espaço com
animais — deram lugar a uma enorme área verde. Mas, 10 anos após o fechamento
do que foi o maior lixão da América Latina, do outro lado dos muros o que se vê
é o total descaso do poder público.
Segundo
o Fórum Comunitário de Jardim Gramacho, cerca de 40 mil pessoas vivem no bairro
atualmente. A comunidade é formada basicamente por ex-catadores, cuja situação
piorou drasticamente após o fechamento do espaço.
Esta
é a primeira reportagem da série 'Década jogada no lixo', na qual o g1 conta
como está Jardim Gramacho depois que as montanhas de lixo desapareceram.
Um
dos ex-catadores é Alefe Viana, de 28 anos. O sorriso largo esconde a vida de
raras oportunidades. Morando em um barraco de madeira com cerca de três metros
quadrados, cuida sozinho da filha, após ter ficado viúvo quando ela tinha
apenas 8 meses de vida.
Mesmo
assim, o brilho no olhar é de quem ainda tem esperança que as coisas mudem.
“Foi
a maior barra, mas Deus está no controle e, hoje em dia, ela (filha) está bem,
com 3 anos. Eu vivo assim, me superando e me reinventando”, diz o rapaz.
No
caso de Alefe, as dificuldades de criar um bebê sozinho não se limitaram a
trocar fralda, cozinhar e colocar para dormir. Ele fez isso sem ter bica dentro
do barraco para cozinhar nem banheiro com chuveiro e vaso sanitário. Mesmo
assim, a esperança é o que fala mais alto.
“Nada
foi feito, não voltaram depois para explicar nada, o que vai acontecer, que ano
que vai se fazer, que ano que vai terminar, ou quando que vai começar, e isso
está no papel, não saiu do papel. Não tenho água encanada, não tenho saneamento
básico, o meu propósito é eu me reerguer na vida para eu botar o meu
encanamento”, conta o rapaz, que hoje está desempregado.
Alefe
começou a trabalhar nas imensas montanhas de lixo de Gramacho aos 16 anos.
Como
a legislação da época não permitia a permanência de menores em aterros
sanitários, ele catava recicláveis para vender durante a noite, na
clandestinidade, e com maior risco de atropelamento, já que centenas de
caminhões subiam e desciam o aterro com apenas a luz dos faróis.
Quando
o aterro fechou as portas, no dia 3 de junho de 2012, ele já tinha 19 anos e
recebeu uma indenização de R$ 14 mil, que usou para pagar dívidas e ajudar a
família.
Criança
morreu vítima de verminose
A
ausência do saneamento básico afeta, principalmente, a saúde da população.
Casos de hanseníase e doenças de pele são muito comuns na comunidade, mas o
caso mais grave ocorreu há cinco anos, quando a pequena Mirela, de 2 anos e
cinco meses, morreu vítima de verminose.
Os
sintomas começaram com fortes dores abdominais. Após a primeira ida ao
hospital, a família recebeu o diagnóstico de virose. No dia seguinte, as dores
ficaram mais intensas, e a criança não parava de vomitar. Os pais voltaram com
ela para a emergência.
“Ela
não estava nem conseguindo ficar em pé. Levaram ela para a sala vermelha.
Chegou lá, teve que transferir ela para [o Hospital de] Saracuruna”, lembra
Anataniele Baptista, que na época tinha 19 anos e era mãe de outro bebê.
A
mãe passou todos os dias no hospital com a criança, mas no quarto dia pediu que
um amigo da família ficasse na unidade de saúde para que ela o marido fossem em
casa rapidamente. Assim que chegou ao Jardim Gramacho, o casal recebeu uma
ligação e voltou ao hospital.
“Quando
viram a gente, já entraram para a sala de acolhimento e deram a notícia que ela
tinha ido a óbito”, lembra Anatanielle, ao embargar a voz e não conseguir
concluir o raciocínio.
‘Se
o lixão voltasse, eu voltaria a trabalhar nele’
Susana
Maria de Jesus, 55 anos, era tão pequena que não lembra com que idade
exatamente pisou pela primeira vez na rampa, nome dado pelos catadores aos
imensos paredões de lixo.
“Acho
que eu tinha uns 5 anos. Minha mãe me levava para a rampa, me botava numa
cabana e ia catar”, diz Susana, que seguiu os passos da mãe e criou seus cinco
filhos com o que tirava do lixão.
Numa
noite, depois da volta de um dia de trabalho no aterro sanitário, Susana foi
despejada porque o dono do barraco em que ela vivia tinha acabado de vender o
lugar para outra pessoa. Foi então que ela resolveu juntar o pouco dinheiro,
que já não dava para alimentar as crianças, para comprar um terreno por R$ 1
mil.
“Fui
pagando de R$ 100 em R$ 100. Mas era muito dinheiro, então passei a dar de R$
50 em R$ 50”, conta a ex-catadora, que na época ergueu um barraco de madeira no
terreno.
Em
2012, com o dinheiro da indenização, Susana finalmente construiu sua tão
sonhada casa de alvenaria. “Consegui a casa que os meus filhos tanto pediam.
Porque eles tinham vergonha de trazer um colega porque era um barraco de
tábua.”
Hoje,
apesar de a casa nova ser de tijolo e cimento, chama atenção a falta de
chuveiro no banheiro e de torneira na pia da cozinha. Mas não é descuido: os
utensílios são desnecessários em um imóvel que não tem água encanada, nem
saneamento básico.
“Aqui
é o balde que a gente enche d’água para tomar banho. Toma banho de canecão.”
Para
tomar banho, os moradores da comunidade do Maruim usam carro-pipa e pagam R$ 50
por mil litros de água, que não dá para todo mundo. Quando a água acaba, eles
utilizam a de um poço, cedida por um pastor da região.
“Mas
eu estou levando a minha vida assim mesmo e eu sou feliz. Mas, se o lixão
voltasse, eu voltaria a trabalhar nele. Então, quer dizer, eu criei meus filhos
assim. Graças a Deus está todo mundo com vida e eu tô aí. Sequelas, deixa,
porque tem a perna com varizes, a dor na coluna, sempre aparece alguma coisa”,
afirma Susana.
Cedae
e Águas do Rio
Saneamento
básico de Jardim Gramacho era uma das promessas do governo do RJ em 2012. Mas a
Cedae admitiu que durante essa última década não realizou qualquer obra no
bairro.
“Vale
lembrar que o leilão dos serviços da companhia ocorreu justamente para
possibilitar maiores investimentos da iniciativa privada e acelerar o processo
de universalização dos serviços de saneamento”, disse a Cedae.
Em
nota, a concessionária Águas do Rio admitiu que o local apresenta problemas
históricos de saneamento básico e se encontra no plano de melhorias previstas
pela concessionária.
“Uma
das iniciativas é o início da operação de uma Estação de Bombeamento de água
que está em fase de implantação e tem previsão de conclusão nos próximos quatro
meses. A expectativa é que haja uma melhora significativa no abastecimento de
Jardim Gramacho. Vale destacar que a empresa tem como meta contratual, alinhada
ao novo Marco Regulatório, a universalização do acesso à água em até 10 anos, e
a da cobertura de esgotamento sanitário em até 12 anos”, diz a concessionária.
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: g1
Nenhum comentário
Postar um comentário