"Os garimpeiros descem o rio de barco a motor e falam: 'Depois, vou matar vocês'. Até hoje, eles dizem: 'Vocês querem a nossa bala? Depois, vocês vão tomar a nossa bala'". O relato é do jovem da comunidade Palimiú, na Terra Indígena Yanomami em Roraima, Josimar Palimi Theli, de 22 anos. Há exato um ano, no dia 10 de maio de 2021, a região era atacada a tiros por garimpeiros ilegais. Agora, mesmo passado todo esse tempo, o medo, a insegurança e a violência ainda assombram os indígenas que vivem por lá.
Indígenas yanomami fazem travessia no rio Uraricoera, na comunidade Palimiú — Foto: Alexandro Pereira/Rede Amazônica/Arquivo
No
dia do ataque a Palimiú, ao menos sete barcos com garimpeiros armados abriram
fogo contra indígenas. Houve feridos, relatos de mortes, correria de mulheres e
crianças em fuga dos tiros, dias seguidos de tensão com sucessivos atentados e
até troca de tiros dos invasores com a Polícia Federal.
Até
esta terça-feira (10), um ano depois, nenhum dos suspeitos foi identificado
pela PF e o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou a favor do arquivamento
do inquérito.
Dois
meses após início de conflitos, garimpeiros voltam a atacar indígenas na Terra
Yanomami, diz conselho
Desde
então, o que restou aos indígenas foram o medo, o trauma e a preocupação com a
iminência de um novo ataque. O jovem Josimar Palimi Theli afirma que, em
Palimiú, os ianomâmi vivem uma tensão constante. A região engloba ao menos 11
comunidades em que vivem cerca de 800 indígenas.
No
dia em que deu entrevista ao g1, Josimar estava em Boa Vista acompanhado de
duas lideranças pedindo ajuda ao presidente do Conselho Distrital de Saúde
Indígena Yanomami e Ye'kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, porque um
barco da comunidade havia sumido e eles acreditavam que tinha sido levado por
garimpeiros.
"Os
garimpeiros ainda ameaçam a gente. Lá na nossa comunidade, eles [garimpeiros]
passam todos dias, de noite, à tarde. As crianças não dormem bem. Todo dia
isso, subindo e descendo o rio", afirma Josimar.
Entre
as ameaças feitas pelos garimpeiros, as que mais assustam os moradores de
Palimiú, de acordo com Josimar, são as feitas contra crianças da comunidade.
Ele conta que o campo em que eles jogam futebol não é mais um local seguro por
conta do frequente trânsito de invasores.
"Em
Palimiú todo mundo tem medo. As crianças jogam no campo, eles enrolam a sacola
para fazer bola e brincar, mas, quando os garimpeiros encontram elas, eles
ameaçam: 'Ei meninos, vocês querem a nossa bala?'. Isso assusta muito. Mas eles
não ameaçam só as crianças. Ameaçam todos os 'parentes' [indígenas que vivem na
comunidade] também".
O
MPF acompanhou o inquérito instaurado pela PF e disse, "mesmo com as
diligências por parte das autoridades policiais, não foi possível identificar os
responsáveis pelos ataques à comunidade indígena". Com isso, o órgão
sugeriu o arquivamento.
O
ministério, no entanto, afirma que a possibilidade de "reabertura da
investigação caso surjam novas informações que possibilitem o avanço dos
trabalhos, respeitando a legalidade e os direitos dos envolvidos".
Dias
antes do ataque, um grupo com ao menos 12 garimpeiros -- alguns encapuzados --
gravou um vídeo em que um deles dizia estar pronto para "fazer a
guerra" (veja abaixo). Eles estavam armados com pistolas, espingardas e
até fuzis, ostentando o armamento em uma embarcação no rio Uraricoera. Um dos
que apareciam nas imagens foi preso.
Terror
na floresta
Ao
comentar a situação na região, o jovem Josimar Palimi Theli relembra um
episódio traumático para ele e a família. Segundo ele, os garimpeiros
sequestraram seus sobrinhos "para assustar" os indígenas que vivem em
Palimiú. Os invasores pegaram as crianças e as deixaram em uma região de mata
fechada. É emocionado e com a voz embargada que ele fala o momento de susto e
desespero.
Homens com arco e flecha na comunidade Palimiú — Foto: Alexandro Pereira/Rede Amazônica/Arquivo
"Mas
acabou que jogaram os meninos no mato, para ameaçar. 'Cai fora, eu não vou
deixar vocês lá não', eles falaram [para as crianças]. Meu irmão procurou os
filhos o dia todo no rio, remando só com um remo. Quando já era noite, ele
ouviu as crianças chorando. Eles falaram: 'Papai, papai, eles jogaram nós aqui,
eles queriam nos matar'. Tudo isso só para ameaçar mesmo", contou.
De
acordo com Josimar, agentes da Força Nacional estão em Palimiú. Mas, ainda
assim, os indígenas se sentem impotentes e desprotegidos desde os primeiros
ataques, há um ano.
"Lá
na nossa comunidade tem a Força Nacional, mas os garimpeiros não tem medo
deles. Eles tem pistola, fuzil. Essa Força Nacional que fica lá, fica só no
centro [no posto onde ficam servidores da saúde", conta.
"Os
garimpeiros estão ameaçando todo mundo, vai ter um ataque a qualquer
momento", teme o jovem Yanomami.
No
vídeo abaixo, de 16 de maio de 2021, uma mulher yanonami fez um relato
dramático sobre a presença dos garimpeiros armados em Palimiú. Ela disse que
mulheres e crianças têm precisado fugir para o meio da mata para se proteger e
afirmou que, sem segurança no local, teme pelo momento em que vão ser mortos
pelos invasores.
'Uma
grande crise'
De
acordo com o presidente do Condisi-YY, Júnior Hekurari Yanomami, o que torna
Palimiú uma comunidade suscetível ao ataque de invasores é o fato de ela estar
localizada às margens do rio Uraricoera, usado por garimpeiros para acessar
regiões de mineração ilegal.
"Nós
tivemos muitos relatos durante todo esse ano por parte das lideranças da
comunidade de Palimiú de que os ataques e ameaças feitas pelos garimpeiros
continuam. A comunidade fica às margens do rio Uraricoera, que é passagem para
os grandes garimpos, como Waikás, Aracaçá, comunidades que sofrem muito com o
garimpo", afirma.
Ele
relembra que o ataque dos garimpeiros há um ano teve impacto inclusive na
alimentação da comunidade, contribuindo para a desnutrição -- situação
encontrada grande parte em comunidades afetadas pelo garimpo na Terra Yanomami.
À
época do conflito, com medo, os indígenas se esconderam dentro da comunidade
por quatro meses, o que prejudicou a plantação e a colheita.
"Após
os ataques, a rotina de Palimiú mudou muito, os indígenas vivem com medo. Eles
chegaram a ficar quatro meses se protegendo e se escondendo. Não cuidaram da
alimentação, não cuidaram da roça, não plantaram, só ficaram se escondendo com
medo. Foi uma situação muito grave, uma grande crise", relembra.
Os
garimpeiros chegaram a destruir uma barreira sanitária que existia no rio
Uraricioera e, após os ataques, a barreira nunca foi reconstruída. Hekurari
afirma que os indígenas têm interesse em retomá-la, mas precisam de segurança.
"Essa
barreira não existe mais, estão tentando fazer outra. Para reconstruir essa
barreira precisa de apoio da Força Nacional, Funai, pois é caminho dos
garimpeiros que passam por lá com armamento pesado e com isso pode acontecer
outro ataque".
Em
Palimiú, também há uma Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) que chegou a ser
fechada após os ataques. O posto ficou cerca de seis meses sem funcionar por
não haver segurança para os profissionais de saúde nos atendimentos.
"Nessa
época, a UBSI de Palimiú chegou a ser fechada por cerca de 6 meses. Ficou
fechada por muito tempo, mas agora está aberta com auxílio da Força Nacional.
As equipes de saúde estão lá pois tem a Força Nacional lá protegendo. Sem essa
proteção, os profissionais não ficam pois todo tempo tem ameaça de garimpeiros.
Acredito que agora tenham três profissionais por lá".
Hekurari
afirma que não obteve nenhuma informação sobre o andamento das investigações
com a PF e nem com o MPF. Ele destacou o grau de vulnerabilidade que os
indígenas vivem em Palimiú.
"Palimiú
precisa de uma estratégia de proteção das autoridades. As autoridades não fazem
nada e quem vai nos proteger? Até hoje eles estão com medo pois há a iminência
de um novo ataque, por isso estamos preocupados não só com Palimiú mas em todo
o território Yanomami".
Avanço
do garimpo e insegurança
O
líder indígena Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami
(HAY), a mais representativa organização deste povo, afirma que Palimiú sofreu
muitos riscos no ano passado e, em 2022, a realidade não é tão diferente.
“O
avanço [do garimpo] é muito grande e já são mais de 20 mil garimpeiros [na
Terra Yanomami]. A presença do garimpo cresceu bastante, principalmente no rio
Uraricoera, onde ocorreram os ataques de Palimiú. Então, a comunidade sofreu
muito porque ficou em risco, sofreu ataques, e continua sofrendo", afirmou
Dário.
Para
se ter ideia do impacto do garimpo ilegal na região, no ano passado Palimiú
apresentou um aumento de 228% na área degradada pela mineração ilegal, conforme
o relatório "Yanomami sob ataque", divulgado pela Hutukara em abril.
Devido
a esse número, o medo de ter o direito violado ou a vida perdida em um novo
conflito fez com que os indígenas se tornassem mais resistentes e preocupados
com a segurança das crianças e mulheres da região.
"As
lideranças e guerreiros ficaram com muita resistência de proteção e nenhum
apoio do governo federal. Eles ficaram muito resistentes com essa questão da
luta pela defesa, com a segurança dos seus povos da comunidade", frisou
Dário.
À
época do conflito, agentes da PF e do Exército foram enviados a Palimiú para
investigar o caso. Apesar disso, segundo Dário, a ajuda não foi suficiente para
garantir a segurança da população que ainda se sente ameaçada.
“Com
a pressão, eles [autoridades] foram lá e ajudaram um pouco, mas não é o
suficiente no apoio da segurança da comunidade, o governo federal não priorizou
uma ajuda bem forte na segurança Yanomami”, disse.
Em
maio do ano passado, diante da tensão provocada pelos ataques, o Ministério
Público Federal (MPF) solicitou que a União enviasse tropas militares à
comunidade indígena. No entanto, em abril deste ano, o MPF sugeriu arquivar um
procedimento sobre o caso, aberto na 4ª Vara Federal Criminal da Justiça
Federal do estado.
Em
nota enviada ao g1, o órgão esclareceu que acompanhou a investigação promovida
pela Polícia Federal e buscou esgotar todas as linhas de apuração sobre o caso.
No
entanto, o órgão ressaltou que, caso surjam novas informações, existe a
hipótese de reabertura da investigação. O g1 também procurou a Polícia Federal,
mas não recebeu retorno até a última atualização desta reportagem.
Terra
reconhecida
O
vice-presidente da Hutukara lembra que a Terra Indígena Yanomami foi demarcada
e foi homologada pelo governo federal e estabelece aos indígenas o chamado
"direito originário" sobre as suas terras, e que o garimpo em
reservas indígenas é uma atividade ilegal no Brasil.
“Nossa
terra está garantida na lei brasileira, foi demarcada e foi homologada pelo
governo federal e tem que ser realmente protegida. Por isso, o governo tem que
retirar os garimpeiros ilegais, o governo deve proteger o povo Yanomami e
Ye'kuana e todos os outros povos indígenas do Brasil", afirmou.
Na
esfera cível, o MPF afirma que tem atuado para garantir a permanência da Força
Nacional no polo base do Palimiú e a presença desta equipe tem viabilizado a
continuidade da prestação de serviços de saúde na comunidade. Além disso,
"defende a instalação de bases de proteção etnoambiental no Rio Uraricoera
como forma de combater crimes na região."
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: g1
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