Um fígado debilitado por um mix de substâncias tomadas para dormir, ficar alerta, ganhar definição muscular e, principalmente, emagrecer pode ser a principal chave para entender o quadro que terminou com a morte da cantora Paulinha Abelha, que tinha 43 anos.
Paulinha Abelha tinha 43 anos. — Foto: Reprodução Instagram
- quais
as substâncias tomadas pela artista,
- para
que elas servem,
- quais
as possíveis complicações que elas causam,
- as
lacunas que ainda persistem sobre o que ocorreu com a vocalista.
Antes
de uma análise geral dos medicamentos, conheça em três pontos um resumo do que
dizem os exames médicos e o que consta na receita:
Resultado
da biópsia (laudo anatomopatológico): exame mostra lesão hepática aguda com
necrose. Traduzindo: o fígado da cantora estava fortemente debilitado, com
áreas mortas. Além disso, tinha retenção de bile no fígado (colestase). O
fígado, entre outras funções, é responsável por eliminar substâncias tóxicas
por meio justamente da bile. O laudo não crava, mas diz que as lesões são
compatíveis com as provocadas por medicamentos.
Exame
de substâncias tóxicas no corpo (triagem toxicológica): Deu positivo para duas
substâncias: 1) anfetaminas (remédios que agem no cérebro aumentando estado de
alerta e que têm efeito sobre o apetite) e 2) barbitúricos (sedativos e
calmantes). Deu negativo para outras 10 substâncias, incluindo drogas.
Receita
de medicamentos: o receituário assinado por uma médica nutróloga indicava um
conjunto com 7 medicamentos ou fórmulas. Ao todo, eram 18 substâncias. Na
análise dos especialistas consultados pelo g1, o foco dessa lista era inibir a
absorção de carboidratos, gordura, atuar no humor, no sono e apoiar nos treinos
físicos para ganhar passa muscular.
A avaliação geral de dois hepatologistas e uma nutricionista após uma avaliação dos laudos e os itens que constam na receita é:
"O
principal a apontar é essa "salada de compostos" na receita. Com uma
certa frequência eles interagem entre si e podem resultar em danos sérios ao
fígado", avalia Mário Kondo, professor adjunto de gastroenterologia da
UNIFESP e hepatologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.
Para
Vanderli Marchiori, nutricionista e fitoterapeuta com especialização em
medicina complementar:
"Sem
dúvida alguma, era uma pessoa que tomava remédio para dormir e para acordar. E
para se manter magra o tempo inteiro. E, infelizmente, talvez até de acordo com
o tempo de uso, o organismo não deu conta", afirma Vanderli.
O
hepatologista Raymundo Paraná, professor titular da Universidade Federal da
Bahia (Ufba) e membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia, avalia:
"A
intoxicação por fórmulas (para emagrecer) eu vejo com frequência no SUS e na
clínica privada. A frequência é assustadora. Felizmente, a imensa maioria
evolui bem com a suspensão. Só poucos tem desfechos gravíssimos", afirma
Paraná.
Quais
os remédios e substâncias tomadas por Paulinha?
A
receita com sete tópicos tinha três dedicados a medicamentos alopáticos (da
medicina tradicional, normalmente agem produzindo efeitos contrários aos da
doença, por exemplo, antidepressivos ou antibióticos).
Para
além dos remédios tradicionais, a lista tinha uma série de suplementos
alimentares, extratos de plantas e fitoterápicos (obtidos de plantas medicinais
ou de seus derivados, utilizados com finalidade profilática, curativa ou
paliativa).
Os remédios listados tinham como função regular o humor, sono e apetite.
Entre
os tradicionais, o primeiro da lista era o bupropiona, um antidepressivo que
costuma ser usado em tratamentos para deixar de fumar, mas ela também é
eventualmente receitado por atuar contra a compulsão por doces, segundo Vanderli
Marchiori.
"O
perfil de segurança é bem satisfatório para o seu uso isolado, mas tem muitas
interações medicamentosas perigosas. É preciso cautela quando é usado com
outras medicações", alerta o hepatologista Raymundo Paraná.
Outro remédio alopático da lista é o venvance, usado para tratar hiperatividade e déficit de atenção, mas que também pode ser aplicado em tratamento contra transtorno alimentar. É da classe das anfetaminas, substância que apareceu positiva no laudo.
"Pode
causar agressão hepática, mas não é habitual se usado isoladamente. Tem muitas
interações medicamentosas nefastas sobretudo com antidepressivos. Pode causar
arritmia e não deve ser usado em pacientes com insuficiência renal",
explica o hepatologista Raymundo Paraná.
Por
fim, o Orlistat fecha a lista dos remédios tradicionais voltado especificamente
para o emagrecimento: age no intestino. Ela inibe uma enzima produzida no
pâncreas, a lipase, que faz a ingestão de gorduras. Isso faz com que cerca de
30% da gordura ingerida na alimentação seja eliminada nas fezes.
"Seu
efeito adverso é a perda de continência, eliminando gorduras através do ânus. O
indivíduo pode passar por situações vexatórias, por isso o próprio paciente
diminui a ingestão de alimentos gordurosos. Em relação ao fígado é muito
seguro, mas tem casos de hepatite.
Na
outra metade da lista o foco das outras quatro fórmulas e suplementos era:
- acalmar,
reduzir estresse e ansiedade;
- ajudar
no combate da insônia e a manter a atenção;
- impede
a absorção de carboidrato;
- ganho
de massa muscular.
Como
as fórmulas ou extratos não possuem uma padronização de dosagem para uso ou
mesmo não foi possível localizar estudos de eficácia científica, o g1 não vai
listar os nomes de todas as substâncias que as compõem.
Quais
as possíveis complicações das substâncias?
O
professor e hepatologista Raymundo Paraná destaca que os itens da lista
classificados como suplementos alimentares e afins não apresentam estudos de
fase 3 (testes em larga escala com humanos comparando o produto com um placebo)
para atestar eficácia e dosagem segura.
Além
de fazer ressalvas generalizadas para praticamente toda a lista, o professor
ressalta que há relatos de complicações para o uso da valeriana, da paulinea e
da garcinia camboja.
"Sobre
a garcínia, o que nós temos de fato, baseado em estudo clínico, é um alerta do
NIH dos EUA que a garcínia pode causar agressão hepática e algumas vezes essa
agressão pode ser grave. É uma droga que deve ser evitada", afirma Paraná.
O
professor Mario Kondo também destaca o mesmo composto. "Pelo menos essa
garcínia camboja é bem conhecida, mas outros podem estar envolvidos (no
desgaste do fígado)", avalia Kondo.
Já
a nutricionista Vanderli Marchiori avalia que o receituário era extenso, mas
que de modo geral a prescrição "fazia sentido". "Sem conhecer o
caso, tirando o bupropriona e o venvance, faz sentido para algumas
pessoas", avalia Vanderli, que não viu na lista nenhuma quantidade
prescrita acima do que é comum no meio.
Quais
as lacunas no diagnóstico e na análise do caso?
A
certidão de óbito de Paulinha aponta insuficiência renal aguda, hepatite,
hipertensão séptica e meningoencefalite. Os médicos que atenderam a cantora
apresentaram o caso como um quadro de comprometimento multissistêmico. A
família ainda aguarda novos exames para descobrir o motivo das rápidas
complicações de saúde. Ainda não se sabe o motivo de ela ter apresentado rápida
piora e as complicações terem afetado outras partes do corpo.
Uma
das principais funções de um fígado saudável é depurar o sangue. Em um quadro
de hepatite fulminante causado pela ingestão de substâncias tóxicas, as células
do fígado - chamadas de hepatócitos - morrem rapidamente, causando o colapso do
órgão. Com isso, a corrente sanguínea "envenenada" pelas toxinas causa
a inflamação de outros órgãos. Geralmente, o cérebro é o primeiro a falhar,
causando a morte encefálica.
O
papel dos remédios no comprometimento parece ser uma das chaves da análise. Em
entrevista ao Fantástico no dia 27 de fevereiro, o marido de Paulinha Abelha,
Clevinho Santos, disse que a artista nunca tomou anabolizantes, mas que
"sempre tomou" remédios do tipo "mais diuréticos".
"Quando tinha um show, uma coisa que ela queria dar uma secada, esses chás
de emagrecer”, contou.
O
período de exposição a medicamentos pode ter comprometido o fígado e ainda não
se sabe a quanto tempo ela estava tomando os medicamentos da atual receita.
"Apenas
como especulação, é possível que ela tenha tido um quadro como o da enfermeira
Mara Abreu. Hepatite aguda grave que, se não transplantada a tempo, pode
rapidamente levar à morte", aponta Mário Kondo, professor adjunto de
gastroenterologia da Unifesp e hepatologista do Hospital Sírio Libanês de São
Paulo.
Para
Raymundo Paraná, que coordena um ambulatório que estuda casos de hepatite
fulminante, é preciso ser "absolutamente honesto e transparente". Ele
afirma que é muito difícil o diagnóstico de toxicidade. "Não é por outro
motivo que tem tantos suplementos fitoterápicos vendendo sem nenhum controle, é
porque o diagnóstico é difícil", afirma.
"São
pouquíssimos centros no Brasil que podem contar com a estrutura necessária
(para investigar cada caso), então a subnotificação é a regra", afirma
Paraná. Ele explica que mesmo com a biópsia do fígado não há garantias
absolutas, já que ao contrário de outras doenças como alcoolismo ou hepatite a
ou B, não há sinais visíveis individuais da intoxicação na maioria dos casos, e
na maioria dos casos o diagnóstico ocorre por eliminação e avaliação do
histórico da paciente.
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: g1
Nenhum comentário
Postar um comentário