Uma tragédia humanitária vivida sob o nazismo, em um dos países atualmente com um dos melhores indicadores de desenvolvimento humano do mundo, tem desde então trazido lições ao mundo a respeito dos impactos da fome extrema sobre bebês que ainda nem tinham nascido.
Durante
meses, as tropas alemãs bloquearam o suprimento de comida para grandes partes
do território holandês, deixando 4,5 milhões de pessoas em situação de fome
extrema.
"As
pessoas comiam os cachorros, os gatos e os ratos. Era simplesmente
desesperador", contou um sobrevivente à BBC em 2013. "Os padeiros não
tinham trigo, então, faziam pães aguados, que grudavam na boca."
Alguns
estudos estimam que cada holandês dispunha de comida equivalente a 370 calorias
por dia — lembrando que as normas de saúde vigentes hoje sugerem a ingestão
diária de 2 mil calorias por dia para mulheres e 2,5 mil para homens.
Foi
um dos mais graves episódios de fome ocorridos durante a Segunda Guerra
Mundial, que deixou 20 mil mortos e só terminou com a derrota da Alemanha, em
maio de 1945, e a libertação da Holanda.
É
um desastre que permanece na memória coletiva dos holandeses até hoje, explica
à BBC News Brasil a pesquisadora Tessa Roseboom, professora de Desenvolvimento
e Saúde na Primeira Infância na Universidade de Amsterdã.
"A
memória coletiva do povo holandês sobre a Segunda Guerra é dramática",
relata. "Claro que os números de sobreviventes estão diminuindo, mas todos
conhecemos histórias de pessoas que tiveram de comer bulbos de tulipa, que
tiveram que andar centenas de quilômetros para achar comida."
Ao
mesmo tempo, o fato de a fome extrema ter ocorrido apenas durante um breve
intervalo de tempo (a escassez acabou quando o abastecimento de comida foi
normalizado, e a Holanda caminhou para ser um país extremamente próspero) deu
aos cientistas um cenário ideal para estudar o que a falta de nutrientes faz
com o corpo de uma pessoa — em particular, uma pessoa ainda em formação, dentro
do útero da mãe.
E
as pesquisas sobre o "inverno da fome" (ou hongerwinter, no original)
mostram que as consequências são sentidas até hoje por pessoas que estão na
casa dos 70 e 80 anos, e provavelmente serão sentidas por seus descendentes.
Mais
problemas de saúde física e mental
Roseboom
e seus colegas coletaram, em arquivos históricos, registros médicos detalhados
sobre mulheres que estavam grávidas durante o período de escassez e, desde
então, estão analisando a saúde física e mental dos filhos dessas mulheres,
hoje idosos.
Essas
pessoas apresentam maior incidência de obesidade, de colesterol alto, de
diabetes tipo 2 e de problemas cardiovasculares do que a população holandesa em
geral, "riscos que contribuem para menos bem-estar físico e mental e mais
risco de mortalidade nesse grupo", aponta a pesquisadora.
Um
motivo provável é que essas pessoas tiveram seus corpos "programados"
desde o útero para sobreviver com muito pouca comida. Ao longo do tempo, isso
se converteu em um problema de saúde.
"Encontramos
diferenças claras em termos de estrutura e tamanho do corpo, e achamos que isso
se deve à falta de 'blocos de montar' — ou seja, da má nutrição — de suas mães
quando elas estavam construindo o corpo de seus bebês", explica Roseboom.
Além
disso, ela diz que exames de ressonância magnética feitos nessas pessoas
indicam que seus cérebros são menores, o que pode explicar por que eles parecem
ter um desempenho pior em tarefas cognitivas.
E
de modo geral, o cérebro dessas pessoas parece "envelhecer mais
rápido", acrescenta a pesquisadora.
Fome
no Brasil e no mundo
As
consequências observadas na Holanda se referem a um período histórico único e
extremo, mas servem de alerta quanto aos impactos que a falta de nutrientes tem
na saúde de longo prazo das pessoas, em particular fetos e crianças — e de como
isso pode prejudicar a força de trabalho futura de um país, explica Roseboom.
Isso
vale inclusive para países como o Brasil, onde 19 milhões de pessoas estavam,
no final de 2020, em situação de insegurança alimentar (quando o acesso e a
disponibilidade de alimentos são escassos), segundo cálculos da Rede de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
"Primeiro,
o estresse da pandemia impacta crianças já no útero, e sabemos isso a partir de
pandemias passadas. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, deixou marcas
duradouras nas crianças que ainda não haviam nascido. Sabemos que eles tiveram
risco mais alto de doenças cardiovasculares e participação mais baixa no
mercado de trabalho", aponta Roseboom.
"A
restrição ao acesso à comida no Brasil neste momento pode muito bem ter
consequências negativas, principalmente para crianças no útero. Vimos isso na
Fome Holandesa, mas também foram observados efeitos similares em outros
momentos nos quais houve restrição de comida", como em períodos graves de
fome na China, na Irlanda ou no continente africano como um todo, diz ela.
Diante
desse cenário, Roseboom argumenta que, quando se protege a infância e se
garante que grávidas, bebês e crianças recebam nutrição saudável, produz-se um
benefício para toda a sociedade, que contará com adultos mais produtivos e com
menos problemas de saúde. "É impressionante ver como os cérebros (de
pessoas gestadas sob a fome) são menores, fazem menos conexões, têm profusão
cerebral mais pobre para tarefas cognitivas. A escassez de comida não afeta só
a saúde física futura, mas como essas crianças vão se sair na escola, como
conseguirão contribuir para o mercado de trabalho."
"Nesse
sentido, há um importante efeito econômico a ser considerado. Se as crianças
tiverem a pobreza incrustada em seus cérebros, quase literalmente, jamais
conseguirão contribuir com seu (potencial) máximo. É um problema que a
sociedade inteira vai enfrentar se uma geração ficar desprotegida. O legado é
mais longo, com um preço mais alto a ser pago."
De
geração em geração
Outros
pesquisadores que se debruçaram sobre os efeitos do "inverno da fome"
holandês observaram impactos semelhantes aos de Roseboom nos filhos das
mulheres grávidas naquela época, em particular as que estavam no início do
período de gestação.
Estudos
realizados por acadêmicos de universidades dos Estados Unidos e da Holanda, por
exemplo, identificaram que a taxa de mortalidade de quem foi gestado durante a
fome era 10% maior do que quem havia nascido antes ou depois daquele inverno.
Riscos
maiores de sobrepeso, colesterol alto e esquizofrenia também foram
identificados por esses pesquisadores, e uma teoria por trás disso é que a
privação de nutrientes pode ter "silenciado" alguns genes que
participam do processo de queima de gordura no corpo.
Roseboom
também suspeita que haja impactos genéticos, os quais podem inclusive já terem
sido passados adiante para os descendentes dos bebês do "inverno da
fome".
"A
evidência não é tão forte quanto a que observamos nos bebês em si, mas de fato
vemos indícios de que a geração seguinte também se sente menos saudável, é mais
obesa e tem uma saúde pior", explica.
Impacto
em crianças
Embora
os estudos do "inverno da fome" tenham focado principalmente nas
mulheres grávidas e seus bebês, considerados o grupo mais vulnerável naquele
período, Roseboom afirma que suas demais pesquisas indicam que crianças também
têm sua saúde bastante prejudicadas por períodos de fome.
No
Brasil, havia, em 2019, segundo levantamento da Fundação Abrinq pelos Direitos
da Criança, ao menos 9,1 milhões de crianças de até 14 anos em situação
domiciliar de extrema pobreza, o que provavelmente significa que estavam sob
insegurança alimentar — um problema que se agravou com a pandemia, o desemprego
e a inflação.
Um
relatório da Associação de Psicologia dos EUA aponta que a insuficiência de
comida está associada, em crianças, a mais dores de estômago e de cabeça e a
mais resfriados. "E a fome severa antecipa doenças crônicas entre crianças
em idade pré-escolar e escolar", diz o texto.
Além
disso, viver sob a insegurança alimentar pode causar estresse tóxico, que por
sua vez "afeta o desenvolvimento cerebral, o aprendizado, o processamento
de informações e os resultados acadêmicos das crianças".
Ainda
assim, é nos bebês no útero que os malefícios são piores, diz a pesquisadora
holandesa: "É (durante a gravidez) que todos os órgãos estão sendo
formados. Se eles forem construídos com blocos menores e mais pobres, não
surpreende que haja consequências de longo prazo para a resistência aos
estresses da vida cotidiana".
Os
efeitos disso podem ser mitigados ao longo da vida, mas são persistentes, ela
agrega.
"O
coração terá menos células musculares, os rins terão menos unidades de
filtragem, o cérebro terá menos neurônios. (...) À medida que a idade avança,
você fica mais suscetível a problemas. Claro que pode-se consertar um pouco
disso — um bebê desnutrido pode receber muita comida saudável, atividades e
estímulos e minimizar os efeitos, mas reverter completamente não é possível,
porque você não consegue construir seu coração do zero outra vez."
Da Redação/Viva
Notícias
Fonte: g1
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